A Cultura de Paz como Melhor Alternativa ao Terrorismo

David Adams

Traduzido por Tônia Van Acker para Associação Palas Athena com permissão do autor.

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Resumo:

À medida que a cultura da guerra começar a ruir – uma cultura que vem dominando a nossa civilização por 5000 anos – suas contradições irão se evidenciar. Especialmente no tocante ao terrorismo. Argumentaremos a seguir que o terrorismo, e inclusive o terrorismo do estado, é uma manifestação clara da cultura da guerra em sua fase de declínio.

Começaremos por uma definição ampla de terrorismo, pois o termo é muitas vezes manipulado por razões políticas. Cada lado acusa o outro de ser o “verdadeiro terrorista”. A Organização das Nações Unidas e os estados não alinhados, especialmente os estados islâmicos, colocam-se no meio.

Afirmações são feitas sobre o terrorismo perpetrado por cada um desses atores, e as contradições analisadas entre eles e por eles. Uma das contradições diz respeito às justificativas religiosas para as alegações de ambos os lados. Outra grande contradição diz respeito ao terrorismo de estado. O Ocidente evita tal discussão, enquanto Osama Bin Laden justificou o ataque ao World Trade Center como retaliação por causa do terrorismo de estado do Ocidente.

Uma discussão central é a questão das armas nucleares, que podem ser consideradas como armas terroristas, segundo os especialistas, inclusive os juízes da Corte Internacional. O uso de armas nucleares em Hiroshima e Nagasaki deu continuidade ao desenvolvimento de bombardeios aéreos à população civil, que havia começado na Primeira Guerra Mundial. Os dois são extensões da cultura da guerra, que vem dominando as sociedades humanas desde os primórdios da história.

As contradições associadas ao terrorismo serão discutidas pelo presente trabalho no contexto da análise da cultura da guerra, preparada para a Declaração e Programa da Ação sobre Cultura de Paz, lançados por ocasião do Ano Internacional de Cultura de Paz da Assembléia Geral das Nações Unidas. Fundada na violência e exploração, a cultura da guerra também inclui: governos autoritários, segredo e manipulação da informação, supremacia masculina, imagens de inimigo e intolerância.

O Programa de Ação da Assembléia Geral pede por um Movimento Global pela Cultura de Paz. Estaria esse Movimento progredindo? Para responder a essa questão, recentemente foi preparado um relatório de Progresso da Década de Cultura de Paz das Nações Unidas, com base em contribuições de 700 organizações da sociedade civil em 100 países. Tais contribuições mostram que apesar de ser ignorado pelos meios de comunicação de massa e pelo sistema das Nações Unidas, o Movimento vem avançando em todo o mundo.

Embora a violência deva ser evitada, é preciso que se faça um esforço ativo para substituir a cultura da guerra por uma cultura de paz. Para tanto, a cultura de paz está necessariamente ligada à metodologia da não-violência ativa, desenvolvida por Gandhi e usada com eficácia por Martin Luther King e outros como força capaz de promover transformações políticas.

Assim, a cultura de paz e não-violência, como descrita a adotada pelas resoluções das Nações Unidas, oferece uma alternativa viável à cultura da guerra e violência, que se encontram nos fundamentos dos dois lados envolvidos nos embates terroristas de nossos tempos. E o Movimento Global de Cultura de Paz oferece o veículo histórico para as transformações profundas que se fazem necessárias.

Texto integral:

Desde a destruição do World Trade Center em Nova York no ano 2001 só se fala em terrorismo – é alta prioridade nas Nações Unidas e para a política das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos e União Européia. E, evidentemente, os próprios terroristas mobilizam sua gente com declarações públicas de tempos em tempos. Enquanto isso, as manchetes na mídia parecem viver de terrorismo. Esta faz parecer que existem apenas dois lados, um certo e um errado; mas num exame mais acurada há diferenças, problemas e contradições. Antes de analisá-los, contudo, ouçamos os atores, um de cada vez:

Primeiro é preciso definir o terrorismo para os propósitos deste trabalho. Não se trata tarefa simples pois, como observado pelo website das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), não há uma definição que tenha sido aceita formalmente pela ONU. De fato, como demonstraremos, a definição de terrorismo e de terroristas é o pomo da discórdia entre os atores. Mas, para iniciar a presente análise, ofereço uma definição que deriva informalmente da definição “acadêmica” dada no website da UNODC:

O terrorismo é a violência perpetrada por um indivíduo, grupo ou estado, concebida de forma a assustar uma população não combatente, para fins políticos. As vítimas são em geral escolhidas ao acaso (alvos de oportunidade) ou seletivamente (alvos representativos ou simbólicos) entre uma população, de modo a passar uma mensagem que pode ser de intimidação, coerção e/ou propaganda. Ela difere do assassinato onde a vítima é o alvo principal.
As Nações Unidas

No âmbito do Conselho de Segurança o terrorismo é a mais alta prioridade, mesmo sem estar definido. Os três itens listados na página do Conselho dentro do website das Nações Unidas dizem respeito direta ou indiretamente ao terrorismo:

* Comitê Contra o Terrorismo

* Comitê de Sansões à Al-Qaida e Taliban

* Comitê 1540 (para não proliferação de armas nucleares)

O Comitê Contra o Terrorismo foi criado para implementar a Resolução 1373 adotada pelo Conselho de Segurança em resposta ao ataque terrorista no World Trade Center. A resolução foi escrita de tal forma a associar o terrorismo com “entidades e pessoas” e dissocia-los do estado, incitando os estados a: “Não oferecer qualquer forma de apoio, ativo ou passivo, a entidades ou pessoas envolvidas em atos terroristas, inclusive suprimindo o recrutamento de membros para grupos terroristas e eliminando o suprimento de armas a terroristas”. O Comitê de Sansões à Al-Qaida e Taliban, que existia antes mesmo dos eventos de 2001, dá forma definida ao termo “entidades e pessoas”. Ali o terrorismo de estado, que discutiremos mais adiante, não é cogitado nem reconhecido.

A resolução 1540 para não-proliferação de armas atômicas não foi criada para livrar o mundo dos arsenais nucleares existentes, mas apenas para evitar que outros países comecem a desenvolver e colecionar tais armamentos. Visto que o terrorismo nuclear é um dos maiores problemas do mundo de hoje, ainda voltaremos a esta questão.

A abordagem do Conselho de Segurança reflete claramente seu domínio pelas grandes potências: os Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China, que são, em verdade, as potências nucleares, e que estão entre os alvos primários das “entidades e pessoas” terroristas como a Al-Qaida.

No âmbito da Assembléia Geral, onde as grandes potências não dominam, a abordagem é outra. O documento produzido no encontro de setembro de 2005 nas Nações Unidas dedicou uma seção de 11 parágrafos ao assunto do terrorismo, e recomendou o diálogo entre as civilizações como método preferido para atacar suas causas profundas. Esse documento pede por “uma estratégia para promover respostas abrangentes, coordenadas e coerentes nos níveis nacional, regional e internacional, a fim de combater o terrorismo, e que também tomem em consideração as condições que levam ao alastramento do terrorismo. Nesse contexto, congratulamos as iniciativas que promovem o diálogo, a tolerância e a compreensão entre as civilizações”.

Um dos parágrafos desse documento se refere especificamente à questão das armas nucleares: “Apoiamos os esforços encetados para que entre em vigor o quanto antes a Convenção Internacional para Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear e encorajamos fortemente os Estados a considerarem sua adesão a ela, obedecendo sem demora às outras doze convenções e protocolos internacionais contra o terrorismo, implementando-os”.

Houve certa controvérsia quanto ao terrorismo no recente debate das Nações Unidas sobre Cultura de Paz e Diálogo entre as Civilizações, ocorrido em 20 de outubro de 2005.

Alguns estados entendiam que a cultura de paz e o diálogo entre as civilizações é a resposta apropriada ao terrorismo, fazendo eco ao documento de setembro de 2005, acima citado. O representante da União Européia afirmou: “Quem imaginaria, no início desta década internacional, os desafios à cultura de paz que o mundo enfrenta hoje? Para combater o extremismo e o terrorismo, devemos escolher celebrar os valores que nos unem. Para enfraquecer aqueles que buscam semear a divisão e o caos, devemos nos esforçar para desenvolver sociedades tolerantes e inclusivas. Devemos celebrar o modo como a diversidade enriquece nossas sociedades, melhorar a compreensão inter-religiosa e inter-cultural, e fomentar maior respeito entre comunidades.” Da mesma forma, o representante do Irã declarou: “O fortalecimento da cultura do diálogo entre as civilizações será um elemento de suma importância para combater as calamidades atuais, em especial o terrorismo. Isto porque o terrorismo busca fazer da diversidade entre as nações uma fonte de conflito, enquanto o diálogo entre as civilizações pode ajudar a transformar essa mesma diversidade no fundamento para a cooperação e o desenvolvimento”

. Por outro lado, houve críticas quanto ao modo como o terrorismo foi ligado à intolerância religiosa e à “islamofobia”. Isso foi levantado pelo representante da Malásia, que disse: “É desalentador verificar que os últimos e trágicos acontecimentos – do ataque terrorista de 11 de setembro, passando pelos ataques em Madrid e Londres, até o incidente em Bali – aumentaram ainda mais a distância entre as civilizações, gerando uma perspectiva negativa do Islã, especialmente entre os não-maometanos do Ocidente e de outras partes do mundo. Há urgência em corrigir as idéias errôneas de que os atos de terrorismo estão sendo sancionados por uma religião ou cultura em especial. O terrorismo deve ser atribuído ao perpetrador e não à religião que este professa. É totalmente injustificável associar o terrorismo com qualquer raça ou credo em especial. As causas primeiras de qualquer ato de terrorismo devem ser cuidadosamente examinadas para que se possa tratar eficazmente e combater o terrorismo.” Estas observações foram reforçadas pelos representantes da China e do Quatar.

UNESCO

Recentemente o Relatório sobre Cultura de Paz elaborado pela UNESCO para a Assembléia Geral (A/60/279) inclui em seu parágrafo 19 a seguinte observação: “O compromisso com a cultura de paz e o diálogo entre culturas e civilizações é também um compromisso de combate ao terrorismo, pois o terror sempre se funda em preconceitos, intolerância, exclusão e, acima de tudo, na rejeição de qualquer tipo de diálogo”.

A análise da cultura de paz feita pela UNESCO reflete seu mandado constitucional, que foi escrito logo após a Segunda Guerra Mundial:

Visto que as guerras começam na mente dos homens, é na mente dos homens que as defesas da paz devem ser construídas (...) A ignorância quanto aos costumes e vida dos outros tem sido, em toda a história da humanidade, uma causa freqüente da suspeita e desconfiança entre os povos do mundo, através das quais tais diferenças muitas vezes se transformaram em guerra. Segunda Guerra Mundial:
O Governo dos Estados Unidos Segunda Guerra Mundial:

Desde o início, o governo dos Estados Unidos deixou claro, através de sua reação à destruição do World Trade Center, que a ameaça do terrorismo poderia ser usada para alavancar o patriotismo norte-americano, para aumentar a vigilância do governo e para justificar ataques a outros países. Naquele primeiro discurso à nação, o presidente Bush disse, entre outras coisas:

Boa noite. Hoje, concidadãos, nosso modo de vida, nossa liberdade mesma foi atacada numa série de atos terroristas mortais e premeditados (...).

As imagens de aviões atingindo prédios, incêndios, enormes estruturas caindo, nos encheram de desalento, terrível tristeza e uma raiva silenciosa, subjacente. Estes atos de assassinato em massa tiveram a intenção de apavorar a nação e levá-la ao caos e à retirada. Mas eles não conseguiram. Nossa nação é forte. Um grande povo foi provocado a defender uma grande nação. Os ataques terroristas podem sacudir os fundamentos de nossos maiores prédios, mas não tocarão os fundamentos da América do Norte. Estes atos retorceram o aço, mas não conseguem arranhar o aço do propósito norte-americano. A América do Norte foi o alvo porque somos o mais brilhante farol da liberdade e oportunidade no mundo. E ninguém apagará esta luz.

Hoje a nação viu o mal, o pior da natureza humana. E nós reagimos com o melhor da América – com a coragem de nossos trabalhadores de salvamento, com o cuidado para com desconhecidos, com vizinhos que vieram doar sangue e ajudar do modo como podiam. Imediatamente depois do primeiro ataque eu acionei os planos de reação de emergência do nosso governo. Nosso exército é poderoso, e está preparado (...)

Já estamos buscando os responsáveis por esses atos malignos. Instruí toda a nossa inteligência e responsáveis pela garantia da lei para que encontrem os responsáveis e os tragam a julgamento. Não faremos distinção entre os terroristas que cometeram estes atos e os que os abrigam (...)

Obrigado. Boa noite, e Deus abençoe os Estados Unidos.”
Dentro de poucos dias Bush enviou ao Congresso uma pacote de medidas chamado “Lei Patriótica” que incluía permissão para espionar cidadãos americanos considerados contrários à política governamental. Estas leis haviam sido preparadas bem antes do ataque às torres do World Trade Center, fato que foi usado como desculpa para sua aprovação. O pacote foi votado e entrou em vigor sem que os congressistas que votaram tivessem tempo sequer para ler tudo na íntegra.

Alguns meses depois foram feitos os planos para a invasão do Iraque pelos Estados Unidos – justificada por sua suposta ligação com o ataque ao World Trade Center. Embora tenha sido mais do que comprovado que o Iraque não tinha qualquer ligação com os eventos de 11 de setembro de 2001, o presidente Bush continuou a afirmar, até em seu discurso aos americanos do dia 18 de dezembro de 2005, que: “Há cerca de três anos atrás anunciei, deste escritório, o início das operações militares no Iraque. Nossa coalizão enfrentou um regime que desafiou as resoluções do Conselho de Segurança da ONU, violou acordos de cessar fogo, financiou o terrorismo e possuía, segundo acreditamos, armas de destruição em massa” [destaque nosso].

Nesse discurso de 18 de dezembro, Bush continuou a fazer do terrorismo o foco central de sua presidência: “Vejo um movimento terrorista global que explora o Islã a serviço de objetivos políticos radicais – uma visão na qual livros são queimados e mulheres oprimidas, e toda oposição é esmagada. Os terroristas operam conduzindo sua campanha de assassinato com um conjunto de objetivos declarados e específicos: desmoralizar as nações livres, nos expulsar do Oriente Médio espalhar o império do medo nesta região e fazer uma guerra perpétua aos Estados Unidos e nossos aliados. Esses terroristas vêem o mundo como um imenso campo de batalha e buscam nos atacar onde podem. Isto atraiu a Al Qaida ao Iraque, onde procuram, através de medo e intimidação, levar a América a recuar (...). Nós derrotaremos os terroristas capturando e matando-os no estrangeiro, eliminando seus portos seguros, e fortalecendo novos aliados como o Iraque e o Afeganistão na luta que partilhamos”.

A definição norte-americana oficial de terrorismo é problemática. Por exemplo, a maioria dos eventos enumerados como terroristas pelo governo norte-americano no ano de 2000 é de ataques a oleodutos pertencentes a empresas norte-americanas. Além disso, a listagem oficial de organizações terroristas é altamente política. Ela ignora organizações localizadas em estados de países aliados e se concentra em organizações de outros estados.

A União Européia

Depois do ataque ao World Trade Center a Comissão Européia adotou uma abordagem para o combate ao terrorismo com a seguinte definição do mesmo: ataques violentos (enumerados um a um) cometidos intencionalmente por um indivíduo ou grupo contra um ou mais países, suas instituições ou população, com o fim de intimidá-los, gravemente alterando ou destruindo as estruturas políticas, econômicas ou sociais desses países. Aqui, novamente, está excluído da definição o terrorismo de estado.

No recente Euro-Med Summit em Barcelona, em novembro de 2005, o terrorismo foi o assunto principal. Segundo o Relatório Oficial do Euro-Med, “o Euro-Mediterranean Summit para celebrar o 10º aniversário do Processo de Barcelona chegou a um consenso quanto a um Programa de Trabalho Qüinqüenal para o desenvolvimento da parceria e também do código de conduta contra o terrorismo.” O Código de Conduta lista 21 ações específicas que os estados participantes devem implementar de modo a prevenir ataques terroristas. Embora o código de conduta não mencione a cultura de paz, ele se refere em dado momento ao novo projeto das Nações Unidas de uma Aliança de Civilizações no contexto do diálogo intercultural a fim de promover o entendimento. E o termo “diálogo” foi usado mais de uma dúzia de vezes.

O que não fica claro nesse relatório é se tal ênfase em combater o terrorismo foi partilhada pelos Estados Árabes, que são parte do Processo de Barcelona. Segundo a agência de notícias Reuters em seu relato sobre o encontro: “Uma abstenção em massa por parte dos líderes árabes no primeiro encontro Euro Mediterrâneo, realizado no domingo, mostrou as dificuldades de se fortalecer a parceria de uma década que a União Européia mantém com seus vizinhos do sul.” Segundo a notícia, houve desacordo em torno do tema terrorismo: “A Síria e outros parceiros árabes querem que as Nações Unidas façam uma distinção entre terrorismo e o direito de resistir à ocupação, enquanto que europeus e israelenses se opuseram a qualquer qualificação do terrorismo”.

Os estados islâmicos

Embora haja muitas tendências políticas diferentes entre os estados islâmicos, eles chegaram a consensos dentro da OIC (Organização da Conferência Islâmica). O comunicado final dos ministros de relações exteriores da OIC de 2004 inclui as seguintes observações sobre o terrorismo, mostrando claramente suas diferenças em relação aos europeus:

O Encontro reafirmou sua decisão de combater todas as formas e manifestações do terrorismo, incluindo o terrorismo de estado; afirmou sua decisão de participar dos esforços multilaterais globais para erradicar esta ameaça; rejeitou a seletividade e padrões duplos no combate ao terrorismo e qualquer tentativa de ligar o terrorismo a qualquer religião ou cultura específica. Reiterou também seu apoio à organização de uma conferência internacional, sob a égide das Nações Unidas, para definir o terrorismo e sublinhar a necessidade de esforços no sentido de concluir uma convenção sobre terrorismo internacional que faça a distinção entre terrorismo e luta legítima dos povos sob dominação colonial ou estrangeira, ou ocupação estrangeira, em favor de sua autodeterminação de acordo com a Carta das Nações Unidas e a lei internacional. O encontro reafirmou que situações de ocupação estrangeira são governadas por leis humanitárias internacionais e não por convenções sobre o terrorismo, e também conclamou todos os Estados Membros que ainda não o tenham feito a tomar as medidas necessárias para ratificar a Convenção da OIC sobre o Combate Internacional ao Terrorismo.
Notem a menção específica ao terrorismo de estado e a necessidade de uma definição de terrorismo por parte das Nações Unidas que faça a distinção com “luta legítima”. Estes diferenciam sua posição daquela mantida pelos Estados Unidos e da Europa.

Declarações dos Terroristas

As declarações terroristas mais marcantes dos últimos anos vêm sendo veiculadas em nome da Al Qaida. Aqui estão trechos extraídos da declaração de Osama Bin Laden, divulgada logo após a destruição do World Trade Center:

Deus Todo Poderoso atingiu os Estados Unidos em seu ponto mais vulnerável. Ele destruiu seus maiores edifícios. Louvado seja Deus. Aqui está os Estados Unidos. Cheio de terror de norte a sul e de leste a oeste. Louvado seja Deus. O que os Estados Unidos vivenciam hoje é muito pouco comparado ao que temos vivido por dezenas de anos. Nossa nação vem experimentando esta humilhação e desprezo por mais de 80 anos (...).

Um milhão de crianças iraquianas morreram até agora no Iraque embora não tenham feito nada de errado. Apesar disso, jamais ouvimos denúncias de ninguém pelo mundo ou um fatwa pelo ulema do governante [corpo de doutos maometanos]. Os tanques de Israel e veículos de esteira também entram para destruir na Palestina, em Jenin, Ramallah, Rafah, Beit Jala, em outras áreas islâmicas, e nenhuma voz se ergue e nenhuma medida é tomada (...).

Na esteira desse evento e agora que as autoridades máximas dos Estados Unidos se pronunciaram, começando por Bush, o chefe dos infiéis do mundo, e quem quer que o apóie, cada maometano deve apressar-se a defender sua religião (...).

Eles vieram fazer guerra ao islã em nome do terrorismo. Centenas de milhares de pessoas, jovens e velhos, foram mortos no lugar mais longínquo da terra, no Japão, [Para eles] isto não é um crime, mas uma questão discutível. Eles bombardearam o Iraque e consideram isso uma questão discutível.

Quanto aos Estados Unidos, digo ao país e a seu povo as seguintes palavras: Juro por Deus Todo Poderoso, que ergueu os céus sem pilares, que nem os Estados Unidos, nem aquele que vive nos Estados Unidos terão segurança antes que ela tenha se tornado uma realidade na Palestina e antes que todos os exércitos infiéis deixem a terra de Maomé, que a paz e as bênçãos de Deus recaiam sobre ele.

Deus é grande, e glória ao Islã. Que a paz de Deus, sua graça e bênçãos estejam com vocês.
Mas a ameaça terrorista de Osama Bin Laden não foi dirigida apenas contra os Estados Unidos e outras potências Ocidentais. Foi dirigida também contra governos e estados com populações predominantemente maometanas. Numa fita enviada ao Al Jazeera em 11 de fevereiro de 2003 ele diz:
Também insistimos com os maometanos sinceros para que ajam, incitem e mobilizem a nação [islâmica] diante de eventos tão graves e atmosfera tão acalorada, para que se libertem desses regimes injustos e renegados, escravizados pelos Estados Unidos. Devem fazê-lo também para estabelecer o reinado de Deus na Terra. As regiões mais qualificadas para a libertação são a Jordânia, o Marrocos, a Nigéria, o Paquistão, a terra das duas mesquitas sagradas [Arábia Saudita] e o Iêmen.
Terrorismo de estado

Pelo fato da maioria dos pronunciamentos sobre o terrorismo ser feita por estados e seus representantes, e porque os meios de comunicação de massa comerciais representam interesses do estado, há pouca discussão sobre o terrorismo de estado.

No entanto, lembrando-nos da definição de terrorismo como violência perpetrada para amedrontar uma população não-combatente por razões políticas, pode-se sustentar que muitos dos atos terroristas mais importantes do século XX foram cometidos por estados:

* O bombardeio aéreo de Guernica pelos fascistas espanhóis, imortalizado na pintura de Picasso.

* O bombardeio aéreo de Londres pelos nazistas usando bombas V2.

* O bombardeio de cidades alemãs pela Itália e pelos aliados.

* O bombardeio nuclear em Hiroshima e Nagasaki pelos Estados Unidos.

O terrorismo nuclear é o mais terrível de todos. Ao longo de toda a guerra fria os Estados Unidos e a União Soviética levaram a guerra num equilíbrio de terror, cada qual apontando para o adversário armas nucleares suficientes para destruir a Terra e promover um “inverno nuclear”. Esse equilíbrio de terror foi muito além do bombardeio de Hiroshima e Nagasaki e deixou a população mundial sob uma nuvem de medo. Embora tenha havido uma certa diminuição nas armas nucleares no fim da guerra fria, as esperanças de um desarmamento nuclear foram frustradas pelas grandes potências que continuam a manter armas suficientes para destruir o planeta. Continuamos a viver sob a ameaça nuclear, já que somente os EUA possuem 2000 armas nucleares prontas para disparar.

Quando instada a decidir sobre a questão das armas nucleares, a Corte Mundial como um todo não assumiu uma posição clara, mas alguns membros foram eloqüentes. O Juiz Weeremantry condenou as armas nucleares nos seguintes termos:

A ameaça de usar uma arma que fere as leis humanitárias da guerra não deixa de ferir tais leis meramente porque o terror absoluto que instila tem o efeito psicológico de deter os oponentes. Esta Corte não pode endossar um padrão de segurança que se funda no terror (...). Um regime global que faz da segurança resultado do terror e que consegue falar da sobrevivência e aniquilação como alternativas gêmeas faz com que a paz e o futuro da humanidade dependam do terror. Este não é fundamento para uma ordem mundial que esta Corte possa endossar. Esta Corte tem o compromisso de sustentar o estado de direito, e não o estado da força e do terror; e os princípios humanitários das leis sobre a guerra são parte vital do estado de direito internacional que esta Corte tem o dever de administrar.”
A questão é colocada de forma muito clara pelas eminentes autoridades Johan Galtung e Dietrich Fischer:
Se alguém com uma metralhadora mantém uma classe cheia de crianças refém, ameaçando matá-las caso suas exigências não sejam cumpridas, nós o consideramos um terrorista louco e perigoso. Mas se um chefe de estado mantém milhões de civis reféns usando armas nucleares, muitos consideram isto perfeitamente normal. Devemos por fim a esse critério duplo e reconhecer as armas nucleares pelo que são: instrumentos de terror.
O assunto do terrorismo nuclear perpetrado pelo estado é tabu. Há alguns anos fui convidado por uma colega a falar num congresso acadêmico sobre terrorismo. Respondi dizendo que ela deveria conhecer o conteúdo da minha fala antes de me convidar, e informei que falaria sobre Hiroshima e Nagasaki como sendo os atos terroristas mais importantes do século XX, que oferecem uma defesa ética para todos os atos terroristas desde então. Ela pensou por um momento apenas e depois retirou o convite explicando que, se ela promovesse tal palestra, a Fundação Ford cortaria toda a provisão de fundos para o congresso, e provavelmente nunca mais os financiaria. Da mesma forma, há alguns anos, o Smithsonian Institute do governo dos EUA planejava fazer uma exposição sobre os danos causados a Hiroshima e Nagasaki, mas os planos foram engavetados depois que congressistas reclamaram que isto faria má figura dos EUA. Estes são exemplos típicos.

O terrorismo de estado através de armas nucleares não é praticado apenas pelos EUA, mas também pela Rússia, França, China, Paquistão, Índia e Israel. A recente guerra no Iraque foi justificada pela alegação de que o Iraque iria fabricar armas nucleares. Isto é bastante irônico já que não era verdade, e que os países que acusaram são os mesmos que se recusam a discutir o desarmamento de suas próprias armas.

As Nações Unidas, em vez de discutir seriamente o desarmamento nuclear, está pressionada pelas potências nucleares a ajudar a manter seu monopólio do terror. De que outra forma interpretar a Resolução 1540, mencionada no início deste artigo? Ela foi idealizada não para livrar o mundo dos arsenais nucleares já existentes, mas para impedir que as potências nucleares existentes percam seu monopólio sobre tais armas diante do desenvolvimento e acumulação dessas armas por outros países. Pode-se interpretar de forma similar o parágrafo sobre armas nucleares na seção sobre terrorismo do documento das Nações Unidas do encontro deste ano que, como mencionado acima, promove a Convenção Internacional para a supressão de Atos de Terrorismo Nuclear. Não pede pelo desarmamento das potências nucleares, mas pela manutenção de seu monopólio e controle sobre o armamento nuclear.

Dado o histórico de seu uso em Hiroshima e Nagasaki, a que outro propósito poderão servir as armas nucleares senão o de infundir medo no coração das populações civis? É preciso lembrar que Henry Kissinger advogou o uso de armas nucleares no Vietnã, e quando os americanos invadiram o Iraque em 2003, chamaram o bombardeio de “shock and awe” [choque e pânico].

Bombardeio aéreo

O terrorismo nuclear é uma extensão da prática militar do século XX de bombardeios aéreos. Como dissemos acima, os bombardeios aéreos de Guernica, Londres, Milão, Dresden, Hiroshima e Nagasaki na II Guerra Mundial estabeleceram um precedente de violência em massa contra populações não combatentes como meio de intimidação, coerção e propaganda. No caso de Hiroshima e Nagasaki há evidências de que os bombardeios foram idealizados para enviar uma mensagem a Joseph Stalin, de que os Estados Unidos estavam preparados para destruir a União Soviética, se necessário, no caso de um confronto militar. Não é preciso dizer que a ameaça terrorista aumentou quando a União Soviética priorizou o desenvolvimento de armas nucleares e seus sistemas de lançamento.

Ao longo dos sessenta anos depois do final da II Guerra Mundial temos assistido ao uso contínuo de bombardeios aéreos que, ao menos em alguns casos, podem ser considerados uma forma de terrorismo de estado. Isto inclui o bombardeio com agente laranja, napalm e bombas de fragmentação contra alvos civis e militares por parte dos Estados Unidos no Vietnã; o bombardeio de áreas civis no Panamá pelos Estados Unidos; o bombardeio de Kosovo pela NATO; o bombardeio do Iraque durante a primeira Guerra do Golfo e de forma continuada nos anos subseqüentes.

Os meios de comunicação de massa comerciais

Os danos causados pelo terrorismo de estado são muito superiores àqueles causados pela Al Qaida e outras organizações não-estatais similares. Porque então a mídia fala somente do terrorismo não estatal? Duas motivações saltam aos olhos:

Em primeiro lugar, as organizações terroristas não estatais ameaçam quebrar o monopólio da violência, que é supostamente detido pelo poder estatal, segundo as regras não escritas do poder no mundo de hoje. Os poderes estatais tentam impedir que quaisquer outras instituições detenham os meios da violência organizada, incluindo exércitos e armas de guerra, que ameaçam desestabilizar a “paz”, como definida pelo poder estatal. A mídia em geral não questiona essas regras não-escritas do poder.

Em segundo lugar, as organizações terroristas não estatais recebem atenção sem precedentes por parte dos meios de comunicação de massa comerciais. Enquanto o terrorismo nuclear do estado recebe pouca atenção, cada ato terrorista do Al Qaida, ou de outros terroristas não-estatais, chega às manchetes dos jornais, e cada boletim que eles emitem é citado e analisado à exaustão pela mídia do mundo inteiro. Há uma sinergia informal que dá a impressão de uma conspiração implícita entre o terrorista moderno e os meios de comunicação de massa contemporâneos. Por um lado, as manchetes devotadas aos atos terroristas ajudam os jornais comerciais e programas de televisão a atrair audiência e assim satisfazer seus anunciantes. Por outro lado, os terroristas conseguem fazer sua mensagem mais visível, pois ganham publicidade abundante.

As contradições

Cada um alega que está certo e que o outro lado é o verdadeiro terrorista. Mas na realidade ambos empregam o terrorismo, mantendo as populações civis apavoradas e produtivas, de quando em vez provocando destruição suficiente para causar medo. E cada lado impõe tabus e segredos, gerando propaganda e desinformação.

Cada um dos lados invoca o “Deus Único” para justificar suas ações, e denuncia o fanatismo “religioso” do outro.

As grandes potências continuam a manter armas nucleares prontas para disparar. Ao mesmo tempo, contudo, adotam uma posição contraditória negando acesso a armas nucleares a todos os outros países e grupos. A contradição é aumentada pela aceitação das armas nucleares de Israel. Embora se alegue que tais armas são necessárias para a defesa, elas são úteis apenas contra atores estatais, mostrando-se inúteis contra atos de grupos terroristas não estatais.

Enquanto isso, a mídia e os fabricantes de armas fazem lucros e, em conseqüência, os pobres ficam cada vez mais pobres enquanto os ricos ficam cada vez mais ricos – processo que ocorre dentro dos estados e entre as nações-estado.

Como podemos analisar tais contradições para que se tornem compreensíveis?

Este trabalho sustenta que os dois lados são a manifestação hodierna de uma cultura de guerra que dominou as sociedades humanas desde os primórdios da história, uma cultura que é profunda e dominante, mas não inevitável.

A cultura da guerra

A análise da cultura da guerra foi realizada na UNESCO, onde fui diretor do Ano Internacional da Cultura de Paz da Assembléia Geral das Nações Unidas em 2000.

Tal análise teve origem em outra iniciativa chamada “Declaração de Sevilha sobre a Violência”, na qual iminentes cientistas do mundo inteiro se debruçaram sobre a questão de se a guerra é inevitável por causa da biologia e evolução humana, tendo chegado à conclusão, já apontada pela grande antropologista cultural Margaret Mead, de que a guerra é uma invenção cultural, e de que “a mesma espécie que inventou a guerra é capaz de inventar a paz”. Quando a UNESCO adotou oficialmente a Declaração de Sevilha como política das Nações Unidas, preparei a brochura e dei-lhe o subtítulo “Preparando o terreno para a construção da Paz”.

Quando chegou o Ano Internacional, fiquei encarregado de preparar a Declaração e Programa de Ação para a Cultura de Paz a pedido da Assembléia Geral das Nações Unidas. Como parte dessa tarefa, minha equipe e eu decidimos preparar uma análise, não só da cultura de paz, mas também da cultura da guerra que deveria ser substituída:

1. Imagens evocativas do inimigo

2. Crescimento econômico baseado em supremacia militar e violência estrutural

3. Governança baseada em estruturas autoritárias de poder

4. Desigualdade entre homens e mulheres

5. Segredo e manipulação de informação

6. Soldados e armamento

7. Priorização do direito do grupo em face do direito dos outros

8. Educação que ensina que o poder se baseia em força e intimidação

Esta análise foi incluída no documento original (A/53/370) enviado da UNESCO às Nações Unidas em 1999, e mostrava, ponto por ponto, como as características da cultura da paz e não-violência poderiam substituir a cultura da guerra e da violência:
1. Nunca houve uma guerra sem um “inimigo”, e para abolir a guerra, devemos transcender e sobrepujar imagens evocativas do inimigo através da compreensão, tolerância e solidariedade entre os povos e as culturas.

2. Desenvolvimento humano sustentável para todos – isto representa a maior mudança no conceito de crescimento econômico que, no passado, foi visto como decorrente de supremacia militar e violência estrutural, e conseguida a custas dos vencidos e dos fracos.

3.Participação e Governo Democrático – são as únicas vias para substituir as estruturas de poder autoritárias que foram criadas pela cultura da guerra e da violência, e que a sustentam.

4. Igualdade entre mulheres e homens – irá substituir a desigualdade histórica entre homens e mulheres que sempre caracterizou a cultura de guerra e violência.

5. Comunicação participativa e livre fluxo e partilha de informação e conhecimento – são necessários para substituir o segredo e manipulação da informação que caracterizam a cultura da guerra.

6.Desarmamento, paz e segurança internacional - [Sentimos a necessidade de salientar o fato óbvio de que a cultura da guerra inclui soldados e armas].

7. A elaboração e aceitação internacional de direitos humanos universais, e especialmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi um passo decisivo em direção à transição da cultura da guerra e violência para a cultura da paz e não-violência. Isto pede uma transformação de valores, atitudes e comportamentos, daqueles que beneficiam exclusivamente o clã, a tribo ou a nação para aqueles que beneficiam a família humana como um todo. [Embora a cultura da guerra e violência não seja mencionada especificamente, infere-se que esta considera os direitos de seu próprio clã, tribo ou nação como superiores aos de outros clãs, tribos ou nações.]

8. A educação é o meio principal para promover a cultura de paz. É o conceito de poder que precisa ser transformado – da lógica da força para a lógica da razão e do amor. [Embora a educação para a cultura da guerra e violência não seja mencionada especificamente, infere-se que ela se baseia na força e na intimidação, ou seja, as qualidades básicas do terrorismo.]

Embora a Declaração e Programa de Ação tenham sido aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas como Resolução A/53/243 em 13 de setembro de 1999, ela não incluía a análise da cultura da guerra e da violência. Isto porque a União Européia ameaçou vetar sua aprovação alegando que “não há cultura da guerra e violência no mundo”.

Novamente, encontramos os tabus impostos sobre nosso pensar pelo poder do estado. Não só é tabu falar de terrorismo nuclear, mas é também tabu falar sobre a cultura da guerra e da violência.

Explicando as contradições do terrorismo

As contradições do terrorismo podem ser mais bem compreendidas através de uma análise da cultura da guerra.

1. Imagens do inimigo: Cada lado imprime ao outro características demoníacas, mobilizando sua gente e incitando-a a combater o outro lado. Não se faz nenhuma tentativa de compreender o outro. Bush diz: “Hoje nossa nação viu o Mal, o pior da natureza humana”, e Bin Laden chama a Bush de “o cabeça dos infiéis do mundo”. Além das contradições entre Oriente e Ocidente, há também contradições dentro do próprio Oriente pois, como temos visto, as forças da Al Qaida têm visto os estados árabes moderados como alvos a serem derrubados.

2. Crescimento econômico baseado em supremacia militar e violência estrutural. Ao longo da história a cultura da paz produziu crescimento econômico, ao menos segundo as análises de curto prazo. Como todo historiador concorda, os impérios da Grécia e Roma foram construídos através da guerra e da escravidão, e isto se perpetuou na história recente através do colonialismo e neo-colonialismo. Os terroristas islâmicos fundamentalistas associados a Bin Laden não dispõem de estruturas próprias para suster o desenvolvimento econômico e, de fato, denunciam o materialismo do Ocidente, mas isto poderia mudar caso suas forças conseguissem tomar alguns dos estados abastados do Oriente Médio.

No entanto, há uma contradição na utilidade do militarismo. A longo prazo ele pode ser uma fonte de fraqueza ao invés de força. Por exemplo, pode-se demonstrar que o colapso da União Soviética foi resultado de seu excesso de confiança na produtividade militar. Ao final do seu império, eles não conseguiam sequer prover bens essenciais, como botas, a seus cidadãos (as botas eram usadas pelos militares), muito menos bens de consumo como televisões ou toca-fitas (a prioridade para eletro-eletrônicos era dos militares). Eles tentaram igualar a produção militar ocidental com base numa economia que era a metade da do Ocidente. A balança comercial foi piorando de ano a ano e eventualmente a economia entrou em colapso. O colapso político veio depois do colapso econômico. Há sinais de contradição similar no império americano de hoje.

E há uma contradição ainda mais profunda na exploração do capitalismo, como enfatizaram Marx e seus seguidores. Quanto maior a exploração, maior o empobrecimento dos trabalhadores, até chegar ao ponto em que estes não servem mais como consumidores aproveitáveis. Trata-se de uma contradição porque o capitalismo não se mantém sem consumo de produtos. Ora, uma das tendências mais fortes da economia atual é a distância crescente entre ricos e pobres, tanto no âmbito nacional como no âmbito internacional. As conseqüências para o consumo estão mascaradas pelo endividamento vultoso, mas também a dívida torna-se uma contradição a longo prazo, se começa a crescer demais.

3. Governança baseada em estruturas autoritárias de poder. A Europa e os Estados Unidos criticam a natureza autoritária de seus oponentes terroristas e alegam ser democráticos, mas existem problemas na natureza dessas democracias. Dentro do estado mantém-se um monopólio de poder em forma de exércitos, guardas nacionais e polícias nacionais que sempre podem ser mobilizadas numa emergência. Chamo a isto de “cultura de guerra interna”, uma questão freqüentemente levantada, mas raramente discutida. Por exemplo, em 1995 publiquei no Journal of Peace Research dados mostrando que nos Estados Unidos havia uma média de 18 intervenções internas envolvendo 12.000 tropas ao longo dos últimos 120 anos. Entre os estados pouco se faz para aparentar relações democráticas. Por exemplo, a União Européia eliminou o seguinte parágrafo, que constava da versão original da Declaração de Cultura de Paz A/53/370, aparentemente porque pedia por princípios democráticas nas relações internacionais: “Reconhecendo que o fim da Guerra Fria abriu novas perspectivas para a paz e segurança internacional, e para promover o respeito pelos direitos humanos e princípios democráticos tanto nas relações internacionais quanto no âmbito das nações”.

O problema do poder autoritário pode ser mascarado por algum tempo pelo crescimento econômico, mas como mostra a experiência da União Soviética, quando cessa o crescimento, o apoio popular ao regime autoritário também acaba.

4. Desigualdade entre homens e mulheres. Não sem razão, o Ocidente critica a Al Qaida e outros grupos fundamentalistas islâmicos pela dominação masculina, mas o Ocidente mostra-se muitas vezes hipócrita nesse campo. A cultura de guerra interna, mencionada acima, e que representa o poder último em muitos países, inclusive a União Européia e Estados Unidos, é caracterizada melo domínio masculino.

5. Segredo e manipulação da informação. Os dois lados usam de segredo e desinformação para se atacarem mutuamente. Quando o segredo esconde erros e fraquezas (o que ocorre com freqüência), isto compromete a capacidade do país (tanto do governo quanto das pessoas) de fazer os acertos necessários. Esta contradição foi fatal no caso do império soviético.

6. Os soldados são armas. Cada lado tenta sobrepujar o outro através do uso de soldados e armamento, inclusive armas de destruição em massa. Como descrito acima, o empenho das grandes potências em negar armas nucleares aos países do hemisfério Sul, enquanto defendem a preservação das suas e das de Israel, é uma contradição bastante acentuada, já que tais armas nucleares constituem o maior terrorismo possível. Ironicamente, as armas nucleares não servem como impedimento para terroristas não-estatais.

7. Prioridade dos direitos do grupo sobre os direitos dos outros, já que cada lado alega que Deus está do seu lado e contra os outros. Nos últimos anos a contradição em termos de direitos humanos tornou-se evidente nos Estados Unidos em virtude de seu recurso à tortura, prisões secretas e violação dos direitos civis de seus próprios cidadãos em nome do combate ao terrorismo. Neste particular têm surgido também diferenças entre os Estados Unidos e seus aliados europeus.

8. Educação que ensina que o poder se baseia na força e no medo. Os terroristas islâmicos usam os sistemas educacionais das mesquitas para propagar a imagem de inimigo que fazem do outro lado. Os líderes cristãos e judaicos do Ocidente usam os meios de comunicação de massa comerciais e também o sistema educacional, as igrejas e sinagogas para atingir o mesmo resultado.

A cultura de paz

Embora a União Européia tenha eliminado a análise da cultura de paz das resoluções da ONU sobre o assunto, felizmente a cultura de paz e não-violência não foi. Adotada pela Declaração e Programa de Ação sobre Cultura de Paz, ela passou, junto com outras resoluções, tendo o ano 2000 sido nomeado Ano Internacional da Cultura de Paz e os anos 2001 a 2010 a Década Internacional pela Cultura de Paz e Não-violência pelas Crianças do Mundo. Esta nos oferece um programa para eliminar o terrorismo, tanto o terrorismo de estado como de grupos não-governamentais. E inclui referência à ideologia de não-violência de Mahatma Gandhi e Martin Luther King, uma força poderosa capaz de ajudar na mudança em direção a uma cultura de paz.

Apesar da oposição de europeus, americanos e seus aliados não ter sido capaz de impedir a aprovação da resolução sobre a cultura de paz, conseguiu retirar a provisão de fundos para a cultura de paz. Assim, desde 1999 o sistema das Nações Unidas não manteve qualquer programa de cultura de paz, e tem pouquíssimos recursos humanos voltados para a cultura de paz e não-violência. Já prevendo tal limitação, inserimos na resolução um papel para a sociedade civil:

A sociedade civil deve envolver-se no âmbito local, regional e nacional a fim de ampliar o escopo das atividades de cultura de paz (...). Parcerias entre os vários atores contemplados na Declaração devem ser encorajadas e fortalecidas para que participem de um movimento global de cultura de paz. Uma cultura de paz pode ser promovida pela troca de informação entre os atores sobre suas iniciativas nesse campo.
O Movimento Global pela Cultura de Paz está progredindo? Para responder a essa questão, recentemente preparamos um relatório que marca a metade da Década da Cultura de Paz das Nações Unidas, com base em contribuições de 700 organizações da sociedade civil de 100 países. Esses aportes mostram que, apesar de ser ignorado pelos meios de comunicação de massa e pelo sistema das Nações Unidas, o Movimento está avançando no mundo.

Em resumo, a cultura de paz e não-violência, como descrita e adotada pelas resoluções das Nações Unidas, oferece uma alternativa viável à cultura da guerra e violência que se encontra nas bases dos dois lados do embate terrorista dos nossos tempos. E o Movimento Global pela Cultura de Paz oferece um veículo histórico para as transformações profundas que são necessárias.

A transição da cultura da guerra e violência para a cultura da paz e não-violência é necessária? É possível?

O chamado inicial por um movimento global de cultura de paz foi lançado por um grupo de ativistas, diplomatas e membros associados à UNESCO numa reunião na América Central, onde a definiram como “uma utopia tanto viável como necessária”.

As armas nucleares modificaram a tal ponto a natureza da guerra que a abolição da guerra tornou-se extremamente necessária. A guerra sempre incluiu o terrorismo, mas o terror e a destruição se limitavam, em geral, aos próprios exércitos. Hoje todos se aterrorizam diante das armas nucleares, tanto combatentes como não-combatentes. Durante a Guerra Fria alegava-se que a posse de armas nucleares levava a um equilíbrio do terror. Mais recentemente, tornou-se provável que terroristas não-estatais, mesmo sendo um grupo de poucos, construam e usem armas nucleares. Em virtude das armas nucleares os estados se tornaram mais vulneráveis em vez de mais seguros.

O velho conceito de paz como equilíbrio do terror entre estados não é mais viável. É a própria cultura da guerra o que deve ser substituída.

A idéia de que uma cultura de paz é “necessária” ecoa a conclusão à qual chegaram Albert Einstein e Sigmund Freud em sua correspondência sobre a guerra. Eles ponderaram que a ciência moderna inventou armas tão avançadas e poderosas que teria que abolir a guerra ou ser destruída por ela. A invenção e uso de armas nucleares veio confirmar suas predições. Como disse Einstein algum tempo depois: “Tudo mudou, exceto nossa forma de pensar”.

Mas será a cultura de paz possível? Ou será essa uma visão utópica? No Norte o termo “utopia” é considerado em geral como uma boa idéia impossível de implementar na prática. No Sul, contudo, me garantiram meus colegas, é possível conceber uma utopia viável, em outras palavras, algo possível de implementar.

Embora o relatório sobre o Movimento Global para a Cultura de Paz indique que houve progresso, o progresso parece insuficiente se considerarmos os vastos recursos e poder da cultura da guerra e da violência. Esta percepção é amplificada pelo fato de que os meios de comunicação de massa noticiam regularmente a guerra e a violência, mas não dão notícias da cultura da paz.

Para enxergar como uma cultura de paz é possível, precisamos ter uma visão dialética da história. Como descreveu um famoso revolucionário, a história se move por

Impulsos internos em direção ao desenvolvimento, gerados pela contradição e conflito das várias forças e tendências que atuam num dado organismo, ou dentro de um dado fenômeno, ou dentro de uma dada sociedade; um desenvolvimento aos saltos, catástrofes, e revoluções, - quebras de continuidade.
Consideramos acima alguns dos problemas e contradições associados ao terrorismo dentro do atual sistema mundial de poder estatal, inclusive os efeitos econômicos, políticos e militares contraditórios que decorrem da confiança nas armas nucleares, produção militar, cultura interna de guerra e segredo. Os problemas e contradições parecem estar aumentando em vez de diminuir. Assim, quando vierem mudanças históricas, elas poderão ser catastróficas e revolucionárias. O Ocidente já viu mudanças revolucionárias no passado, em 1789, 1850, 1917, 1946 e 1989. Não temos motivos para acreditar que esta tendência tenha mudado.

A impressão que se tem ao observar os períodos revolucionários do passado é que as ideologias e consciência do povo podem ter um papel chave na determinação dos resultados. Tendo isto em mente, proponho que a chave para transformar nossa cultura de guerra e violência para paz e não-violência será a consciência do povo na época do próximo período revolucionário da história. A transformação será possível se um número suficiente de pessoas considerarem a mudança necessária e possível.

Mas aqui, novamente, nos deparamos com uma contradição. Historicamente a revolução tem sido organizada segundo os princípios da cultura da guerra. E, como resultado, os países revolucionários que emergiram foram organizados com base na cultura da guerra, autoritarismo, segredo, dominação masculina, exploração e militarismo para “defender a revolução de seus inimigos”.

Para fazer aflorar uma cultura de paz será necessário transformar os princípios e a organização da luta revolucionária. Felizmente dispomos de um modelo bem-sucedido: os princípios gandhianos da não-violência. De modo sistemático, os princípios da não-violência revertem os da cultura da guerra empregados pelos revolucionários do passado:

* Em vez de revólver, a “arma” é a verdade.

* Em vez de um inimigo, temos apenas oponentes a quem ainda não convencemos da verdade, e cujos direitos humanos devem ser reconhecidos.

* Em vez de segredo, a informação é partilhada o mais amplamente possível.

* Em vez de poder autoritário, há participação democrática (“poder do povo”).

* Em vez de dominação masculina, há igualdade para as mulheres nos processos decisórios e ações.

* Em vez de exploração, tanto a meta como os meios são justiça e direitos humanos para todos.

* Em vez de educação para o poder através da força, educa-se para o poder através da não-violência ativa.

Conclusões:

Com base na análise precedente, propomos a cultura de paz e não-violência como resposta apropriada ao terrorismo. Outras reações tendem a perpetuar a cultura da guerra, que oferece a estrutura para o terrorismo e, portanto, não são capazes de erradicá-lo.

Dado o perigo que a guerra, o terrorismo e especialmente as armas nucleares representam à vida na Terra, a transição para uma cultura de paz e não-violência é o próximo passo necessário na história.

Por fim, quando as contradições da história chegarem a tal ponto, e a consciência das gentes desenvolver-se e estiver suficientemente engajada, poderá ser possível fazer a transição da cultura de guerra para uma cultura de paz. Para tanto, é essencial empregar os princípios gandhianos de não-violência ativa.

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